da série perdidos da gaveta, livro III do apocalipse mariapiense, epístola às oliveiras vindouras
A minha casa não é minha. O meu bisavô viveu aqui com os três filhos e a mulher. Os filhos casaram-se, ele morreu. A minha bisavó viveu mais uns anos. E viveu aqui com o filho (o meu avô) a mulher dele (a minha avó) o filho deles (o meu pai). O meu avô morreu. A minha bisavó morreu. O meu pai casou-se - com a minha mãe, naturalmente - e veio para cá. Eu nasci, a minha avó morreu. Os meus pais mudaram-se. Fiquei eu. Esta casa não é minha, porque eu só vivo aqui, consciente da minha enferma insignificância para estas paredes que viram anjos e demónios, amor e ódio, doença e morte e vida. E osgas. Muitas osgas. Nem todas sobreviveram, sobretudo as que foram avistadas pela minha mãe.
Se a cómoda que está no meu quarto, a mesma que esteve no quarto da minha bisavó, da minha avó e da minha mãe, decidisse um dia falar comigo, talvez me contasse o que se passou no dia em que os meus tios-avôs, uma tríade de maduros lisboetas, foi para o torel por insultar um polícia. A história faz do meu bisavô um colosso, que com uma bofetada bem aplicada na cara de um, mandou os outros dois ao chão. Ou de quando o Anjinho caiu do 2º andar, pelo vão das escadas, e aterrou de pé no rés-do-chão, incólume. Imagino o tabefe de nervos preso na palma da mão da dona Emília...
Esta casa guarda tudo o que sou, o que não fui e o que poderia ter sido; sabe coisas que eu não sei, coisas que eu gostaria de saber e outras tantas que preferia que não soubesse, mas alguém tinha de ser cúmplice.
Esta casa é de muita gente antes de mim e assim continuará até que de mim seja gerada outra pessoa. Quando isso acontecer, de novo pintarei as paredes, mudarei os móveis de sítio, dormirei noutro quarto, para que nenhum dos segredos seja revelado antes de tempo. Para que os meus bisavós, os meus avós, os meus pais e eu permaneçamos. E para que nenhuma osga fique sem tecto.