oliveira da eurídice

oliveira da eurídice

Wednesday, June 19, 2013

Dos cativeiros

Ok, talvez a ideia de criar uma osga em cativeiro não tenha sido das mais brilhantes.
Nem sempre temos grandes ideias. Às vezes temos ideias mais modestas. Outras vezes temos ideias muito pouco iluminadas, daquelas muito fraquinhas que atribuímos ao cansaço, ao excesso de trabalho (o excesso de trabalho é o new black. Se não trabalhamos demais, não somos fixes.), ao tempo, que anda tão esquisito, ao facto de não dar nada de jeito na televisão.
Outras vezes ainda, temos ideias que, só pelo facto de nos terem impedido de as pormos em prática, quase nos devolvem a fé na humanidade, em jesus cristo, no buda, no elvis, no chocolate light, nos livros de filosofia para totós, na democracia, na resolução de problemas do centro de redes e partilha do windows, nas manifestações pacíficas da população, nas greves gerais, nos pensos de nicotina, na dieta atkins, na secretaria de doutoramentos, na declinação única latina (uma espécie de moeda única que não resultou e que acabou por se transformar em 5, que na verdade são 10, que em bom dizer vai parar a mais de 20), na programação da RTP2...

Mas esta ideia não era dessas. Era só uma ideia. E o problema aqui foi, parece-me que todos concordarão, o azedume da oliveira, a descrença e a desilusão a pingar-lhe dos veios dos ramos, o cinismo com que se recusa sequer considerar uma ideia.

A oliveira entrou na adolescência.
A oliveira é, de há uns meses para cá, uma pequena amostra de monstro, magrinho que dói ver, meio castanho meio verde, com uma língua tão afiada que por mais que uma vez acordei à porta do quintal com a tesoura de poda em riste.
A oliveira continua a ser minha, mas já não o diga em voz alta, porque já ouvi outros donos de árvores comentarem a forma como ela me responde...
A oliveira acorda ao meio-dia e já não gosta de neo-realistas. Agora lê americanos, gosta da Beat Generation e do Kierkegaard.
Não tem medo de nada nem de ninguém, mas tudo a assusta. Vê o Eixo do Mal e ri-se muito e está convencida de que o Al Gore teria sido o melhor presidente americano de todos os tempos.
A oliveira (que ainda é minha mas o mundo escusa de o saber) não sabe o que é um emprego, mas diz que assim que puder, vai arranjar um e sair deste quintal, mudar-se para um jardim onde as oliveiras controlam o comando da televisão e o tempo, onde não existe a opressão de uma biblioteca pobre de contemporaneidade, cheia de poetas mortos e de livros amarelados e feios.

A oliveira já não quer saber de mortos, porque outro dia ouviu alguém dizer que íamos todos morrer e que o sol ia morrer e que depois não havia mais nada e ela decidiu que isso, a ser verdade, só pode querer dizer que só os vivos contam. E os recentemente trespassados, que ela não tem culpa de estar viva quando eles morrem e uma oliveira tem de se alimentar.

Um dia a oliveira há-de cansar-se de ler as mesmas palavras, de não precisar de um dicionário há anos, de se fartar de si mesma nos outros. Se ainda cá estiver (quem sabe quanto tempo dura a adolescência de uma oliveira? Pior!, quem sabe se é só uma ou se vai e vem, como as calças à boca de sino?), nessa altura volto a falar-lhe da ideia da osga em cativeiro.



De Institutionibus

- Sabes do que me lembrei?
- Diz lá.
- E se eu criasse uma osga em cativeiro.
- ...
- «...» o quê?
- Nada. Só achei que ias dizer alguma coisa interessante.
- Acho que a água do teu prato deve estar estagnada. Não bebas mais que estás a ficar azeda.
- Tu é que estás azeda. E se a água está estagnada é culpa tua, que não me ligas nenhuma.
- Decididamente, tenho de te mudar a água do prato. Mas ouve. Uma osga em cativeiro. Alimentava-a, falava com ela, ensinava-lhe a não vir para o meu lado do quintal, ensinava-a a não ter sempre aquele aspecto peçonhento e ar de quem anda a tramar alguma que elas têm, dava-lhe um nome, até podia fazer-se um baptizado aqui no quintal, podias ser madrinha e
- Calmex! Não sou madrinha de ninguém.
- Então?
- Então nada! Não sabes a responsabilidade que é ser madrinha de alguém? Tenho lá vocação para ser guia espiritual.
- Oh. É só uma osga.
- Se não vais levar isto a sério, não sei porque hás-de fazê-lo. Estás a fazer pouco das instituições.
- Mas não tens de fazer nada, oliveira. Tem calma. Só tens de lhe segurar a cabeça enquanto lhe mando uma mangueirada da outra ponta do quintal...
- Ai sim? É só isso? E quando ela vier perguntar-me qual é o sentido da vida? Ou por que razão tem de comer a sopa toda? Ou por que raio não lhe ligam nenhuma os outros osgos? Ou de onde vem e para onde vai? Achas que é de lhe mandar com uma mangueirada nessas alturas? Ou seguro-lhe só na cabeça enquanto tu o fazes.
- Não sei por que não. Não sei até se não é melhor que estar a contar a verdade.
- Qual verdade?