oliveira da eurídice

oliveira da eurídice

Sunday, November 06, 2011

- Sei que é paranóia minha, mas ia jurar que aquela osga está a fazer-me uma espera. Desperta-me qualquer coisa que já não é só o costumeiro nojo ou o terror inusitado e desproporcional que tenho pelas criaturas da espécie.



- Não é paranóia nenhuma. Ela está mesmo à tua espera. À espera que saias ao quintal.
- Também é escusado gozares comigo dessa maneira. Sabes que me pelo de medo...
- Não estou a brincar, eurídice. Juro com estes dois (ramos) que a terra há-de comer, a rapariga está mesmo à tua espera. Não te lembras da dona Argentina? Claro que não te lembras, nunca te lembras de nada... Adiante. A dona Argentina é (era, paz à sua alma, deus a tenha em paz e sossego) a avó
- "deus a tenha em paz e sossego"?
- Não sejas chata. Cada um com a sua. E tu não tens poucas. Se fosse a ti, aproveitava agora para ficar caladinha. Queres saber ou não?
- Querer, querer, não quero. Mas também não queria ter uma osga colada à janela, e tenho. Claramente, a minha vontade neste quintal conta muito pouco.
- Não sejas fiteira e ouve lá o que tenho para te contar, que não te quero mal. A dona Argentina, dizia eu, é (era, paz à sua alma, deus a tenha em paz e sossego) a avó da Soraia, a osga que tens aí à janela. Não te lembrarás, claro, já vimos isso, mas a dona Argentina, que morreu há 10 anos em cima do telheiro, viveu 5 dos seus 15 anos sem uma perna e com um tique nervoso acentuado que a impedia de caminhar a direito. Nasceu, cresceu e (quase) morreu naquele que é considerado o pior momento da história das osgas deste quintal: a tua infância e pré-adolescência.
- Homessa, mas que fiz eu à desgraçada? Ai, espera... Não me digas que foi aquela que persegui até ao fundo do quintal de vassoura em riste, andava eu pelos meus 12 anos?
- Samente!
- "Samente"?
- Vai ao Youtube. Tem graça, por acaso.
- !?
- Mas sim, foi essa mesma. Conta-me a Soraia que a mãe lhe contou como a sua mãe, avó da Soraia, era doente dos nervos e, quando começaste a jogar basquete no quintal, foi a ruína da comunidade. A rede de basquete pendurada na parede foi o fim. Osgas de quintais vizinhos chegaram a achar que estavam 20 crianças neste quintal com 20 bolas cada uma.
- Não percebo como vem isso ao caso.
- Vem porque a dona Argentina foi parar ao muro proibido sem querer, coitadinha, já pouco lúcida e com o sentido de orientação arruinado pelas vibrações violentas das boladas que atiravas à parede. Uma vez no muro proibido, para além de gritares com os pulmões de um adulto e a intensidade de um infantário com 200 crianças à vista da Argentina (o que desorientou ainda mais a pobre), acertaste-lhe com a vassoura numa das pernas, que teve de ser amputada pela Violeta.
- (engulo em seco)
- A Soraia tem maus fígados, isso está visto. A Violeta tentou explicar-lhe que eras catraia, que não sabias distinguir as coisas, mas a outra, nada. Nunca chegou a conhecer a avó e a mãe, com o desgosto, emigrou para o quintal do 38 logo depois. Nasceu lá, sem família, sem amigos, com uma mãe aterrada e chorosa dia e noite. Agora voltou e quer vingança.
- Vingança? E como pretende uma osga de 7 centímetros vingar-se de uma mulher adulta? Vai engolir-me?
- Ela diz que sabe bem o que fazer.

4 comments:

APS said...

Se o Hitchcock fosse vivo, fazia um grande filme, oh, se fazia!
Nada pior que uma osga soez e terrorista para preparar, no mais íntimo do seu sangue frio, uma espectacular e mortífera emboscada!
Cuidado!!!

oliveira da eurídice said...

Não arreda pé, a maldita!
Está ali, no vidro, a olhar para mim. Deixo-lhe a televisão ligada, para se entreter, mas sei que ela está de olho em mim. Dia e noite. Sem se mexer. A Aurora já se ofereceu para cair para cima dela, mas isso ia partir-me a janela... A ver onde isto vai dar. A ver o nível de paciência da bicha.

Hugo Xavier said...

ó Eurídice então mas estás a falhar-me. Passa cá por casa que eu empresto-te umas duas ou três bolas de basket e resolve-se tudo. A Chaves até tem um achaque e cai-lhe uma sem mais nem ontem.

Hugo Xavier said...

*perna