oliveira da eurídice

oliveira da eurídice

Wednesday, May 19, 2010

NESTE QUINTAL

- ... neste mesmo quintal onde estão agora, já houve galinhas. E coelhos. Mas esta história é com galinhas.

Noites quentes são boas para passar o serão na palheta com a minha oliveira. Ia explicar-lhe a teoria da relatividade, levava um pacote de bolachas maria torrada e um balde com água fresquinha, uma limonada para mim... e oiço vozes, uma grande galhofa na verdade.








- Não havia coelhos nenhuns! - dizia o Sapo
- Como eu estava a dizer, senhor Sapo, esta história é com galinhas. Com uma galinha em particular - continuou a Dona Violeta.
- Galinhas havia, lá isso é verdade. 

Aqui decidi pousar o balde com água. Começava a pesar e a história prometia. Puxei um banco e fiquei à janela.

- Estávamos em mil nove e cinquentas, vivia aqui uma senhora com o Anjinho. Era a Dona Emília. Pelava-me de medo dela, que não tinha medo de nada nem de ninguém e tinha como única preocupação o Anjinho. Nunca me aproximei do Anjinho, como calculam; havia vassouras e a senhora era de um porte respeitável.

A Dona Violeta parou uns segundos com um tique nervoso no olho enquanto repetia "vassouras" entredentes. Respirou fundo e retomou a história:

- Para além do Anjinho, tinha grande adoração pela galinha de estimação, que estava na capoeira grande, ao canto. E um dia, a galinha adoeceu. Não punha ovos, andava acabrunhada, meio cá meio lá. A Dona Emília decidiu então fazer o que se fazia sempre que alguém cá em casa ficava doente - telefonar ao Gualter.
- O da Rua Sésamo? 
- Ó criatura, mas quem és tu? Aí empoleirada na Aurora, olha que ainda cais, que ela não anda bem. 
- Eu sou a boneca de pano da eurídice. Estava muito frio lá dentro e o Artaxerxes convidou-me para o quintal.
- O Senhor Artaxerxes também não pode ver um rabo de saias, não é? - replicou a Dona Paciência de dentro
- E a Dona Paciência sempre é muito quadrilheira.

 - Não, não era o Gualter da Rua Sésamo, que modernices mais tontas. Esse era um boneco, filha, não era a sério. Esta juventude, palavra que não sei o que andam a aprender na escola - respondeu, indignadíssima, a Dona Violeta.
- Julguei...
- Julgou mal. Mas continuando: a galinha ficou doente e sem galinha é que a Dona Emília não ficava, que esta dava uns ovos que eram uma maravilha. Telefonou-se para o Gualter, que era médico e já tinha tratado o Anjinho, e o Gualter percebe que a galinha tinha de ser operada. A Dona Emília arregaça as mangas, esteriliza uma navalha, emborracha o bicho (e o quintal inteiro, na verdade. Foi uma noite tão animada!) e, ao telefone com o Gualter que lhe ia dando indicações, abre a galinha pelo bucho com precisão cirúrgica e extirpa-lhe o mal.
- A Dona Emília operou a galinha?! 
- Sozinha?
- Não acredito!
- Pois acreditem, pequenada, que é bem verdade. Apesar de meio zonza, vi tudo pelo vidro da porta da cozinha. A minha mãezinha, que Deus a tenha em paz e sossego, dizia-me que nunca tinha visto tal coisa e finou-se pouco depois, acho que de pasmo.

- Ó Dona Violeta - dizia a oliveira - tem mesmo a certeza que isso foi assim que se passou? A eurídice nunca me contou nada e ela conta-me sempre tudo.
- Filha, vi eu, com estes dois que a terra há-de comer! Ia agora enganar-te?! Se não te contou é porque não sabe, ora! Além disso, era o Anjinho ainda pequenino. Eu cá não o achava Anjinho nenhum. Diabo Negro era o que ela era, a espantar-me o almoço todos os dias aqui a correr de um lado para o outro. Não havia mosca que assentasse.

- Então e a galinha? - pergunta a boneca de trapos da eurídice empoleirada na Aurora.
- A galinha, pois que sobreviveu. A Dona Emília coseu-a e pô-la a convalescer debaixo da chaminé (isto está muito mudado, já não há chaminé nenhuma, é uma pena), acordou da delicadíssima intervenção cirúrgica e ainda pôs ovos durante um ror de anos - concluiu a Dona Violeta.
- Impressionante! - espantava-se a minha oliveira.
- Uma grande mulher, a Dona Emília - lembrou a Dona Violeta. - Uma grande mulher! Ainda lhe guardo saudade, apesar de tudo.

Ali ficaram mais um bocadinho e, quando me levantava para ir à minha vida, ouvi perguntar:

- E essa galinha, onde andará? Nunca a vi por aqui.
- O Anjinho sempre gostou muito de canja...  - rematou a osga.




4 comments:

APS said...

Belíssimo!,gostei muito.
Espero que tenhas regressado bem. Aproveito para dizer que já tenho comigo o Quevedo que tiveste a gentileza de me indicares. Obrigado,duplamente.

oliveira da eurídice said...

Obrigada, eu :)
Às vezes as andanças cibernéticas trazem coisas engraçadas, com a vantagem de não termos de estar no aeroporto às 4h da manhã. Sou bem regressada, com certeza, com saudades da oliveira e com uma bonita surpresa no vaso que dantes estava vazio :)

Anonymous said...

Pela extraordinária qualidade da galinha – e sem pôr em causa o direito de propriedade, mas pensando que quem vê cristas não vê galinhas – sou levado a reflectir sobre a real pertença do bicho que, por uma razão ou outra, se pode ter transviado, por exemplo, através de um qualquer ERASMUS galináceo, pois sempre ouvi dizer que “a galinha da vizinha é melhor que a minha”.


olobobom

oliveira da eurídice said...

isso seria extraordinário, lobobom, pois acalentava as minhas esperanças da bicha viver ainda hoje e ser académica na Sorbonne, leccionando a cadeira de cirurgia galinácia. Mas que não, parece que viveu e morreu sob a alçada da austera Dona Emília e ela nunca olhou para galinha alheia.
Mas era bom, um erasmus galináceo.